O telefone tocou.
Acordei atordoada. Olhei os números cintilantes no despertador.
Três da manhã!
Quem seria?
- Vais atender – pergunta-me ele tão atordoado quanto eu.
Levantei-me e corri para a sala, em busca do objecto de som estridente. Nunca tal caminho me tinha parecido assim tão longo.
- Estou, digo numa mistura de cansaço e susto
- Está, responde uma voz brusca, também ela de mulher – O Miguel está? Vai chamá-lo?
- O Miguel?! – pergunto agora ainda mais confusa, não sei se pelo sono, pela pergunta, ou simplesmente pela amargura que emanava da voz do outro lado da linha – mas aqui não mora nenhum Miguel.
- Mentirosa! – grita a outra voz num tom de quase animalesco desespero – foi ele que me deu este número. Vai chamá-lo já!
- Desculpe mas … - comecei por dizer, mas logo fui interrompida.
- Cabra!
Desliguei. Ser insultada às três da manhã por uma voz completamente estranha era simplesmente demais. Comecei a percorrer o mesmo longo caminho que me levaria de volta para a cama, mas novamente o telefone tocou. Nunca me tinha apercebido de quanto era estridente e desagradável este som.
- Estou – tornei a repetir certa do resultado.
- Vai chamá-lo, suplicava agora a mesma voz num misto de dor e raiva – preciso de lhe falar, vai chamá-lo.
- Não mora aqui. – Limitei-me a dizer e desliguei.
Tirei o telefone do descanso assegurando-me assim que teria o resto duma noite sossegada.
Cheguei finalmente ao quarto. Ele estava acordado. Sentado na cama, à minha espera.
- Quem era? – perguntou
- Era engano – respondi, deitando-me – alguém que procurava um Miguel.
- Miguel?!
- Pois.
Deitou-se. Senti o calor do seu corpo bem próximo do meu. Encolhi-me. O sono tinha passado. Recordei a voz, e senti pena. Pena porque para além da dureza, a voz parecia triste. Apesar de tudo, parecia vazia e só.
Sentei-me.
No escuro procurei os cigarros.
Acendi um e inalei com prazer.
- O que foi? – perguntou ele acendendo a luz.
- Não foi nada – respondi – desculpa se te acordei.
Olhei para ele. E vi-o como há muito não acontecia. Os olhos, o cabelo, os lábios… os lábios. Sim, decididamente tinham sido os lábios. Tentei em vão recordar o momento em que nos conhecemos. Parecia ter sido noutra vida.
Como é que nos conhecemos? – perguntei - lhe
- O quê?! – retorquiu confuso pelo sono ou pela pergunta.
- Não me consigo lembrar – respondo numa justificação pobre e totalmente desnecessária. – Não sei … parece-me ter sido noutra vida … distante. – Acrescento ainda, certa da dureza das palavras que não tento evitar.
Oiço-o rir, um riso baixo e triste, como o de alguém que há muito aguarda estas palavras.
- Estás portanto farta – afirma, olhando-me sem qualquer pudor.
- Não foi isso que eu disse – respondo do mesmo modo mas sem convicção.
Se calhar era mesmo isso que lhe queria dizer. Não sei. Estava farta antes do telefonema … ou terá sido antes dos lábios. Não sei. Só sei que quero acabar com esta conversa.
- Esquece – tornei a dizer, escorregando suavemente para dentro dos lençóis. Boa noite!
Fechei os olhos mas não senti a luz apagar-se. Tornei abri-los. Estava acesa, agora era ele quem fumava.
Não disse nada, deixei-me estar … imóvel, absorta pelo silêncio imenso.
Pensei no antes. No antes dorido, atormentado. No antes que parece querer consumir-me a alma. Deixei-me consumir.
Antes ter-me-ia levantado, partilhado o seu cigarro. Antes ter-lhe-ia passado a mão pelos cabelos despenteados e pelo rosto mutilado pela barba de alguns dias. Antes ter-lhe-ia dito que gostava dele, ou até mesmo que o amava.
Antes. Agora.
Agora limito-me a ficar assim … imóvel, de olhos fechados a sentir no ar o fumo intenso do seu cigarro. Agora limito aguardar que ele apague a luz.
Apagou-a.
Abro os olhos.
Tenho vontade de chorar, mas não choro. Tenho vontade mas falta-me o sentimento.
Oiço-o levantar-se novamente.
Fecho os olhos.
Acende a luz.
Finjo dormir, talvez para evitar mais um confronto.
- O que é que se perdeu – pergunta ele.
Percebo pelo seu tom que não é mais uma simples pergunta a perder-se no silêncio enorme que teima em permanecer entre nós. Resolvo enfrentar.
Levanto-me para logo me sentar novamente, desta feita aos pés da cama, bem em frente dele. Malditos lábios! Olho – o … realmente. Vejo-o retribuir o olhar na expectativa duma resposta.
- Não sei – respondo com honestidade – talvez nada … talvez tudo. Não estou certa de que houvesse algo a ser perdido – completo, esperando com ansiedade uma reacção.
- Achas mesmo! – responde, num misto de mágoa e exaltação. – Achas realmente que foi tudo um enorme equívoco? Eu não, eu sei que o que sinto por ti … o que sinto não é uma ilusão, é a realidade.
- Cada um tem a sua – respondo.
Ficámos em silêncio … novamente o imenso silêncio.
Tentei desesperadamente lembrar o momento em que o conheci. Em vão. Torno a olhá-lo. Vejo-o bem em frente a mim. Pega novamente num cigarro. Acende-o.
Vejo o fumo que o rodeia, envolvendo-o.
Sei que devo dizer alguma coisa. Quero desesperadamente dizer alguma coisa. Preciso de dizer alguma coisa. Mas … não consigo.
Ao invés, volto a fechar os olhos.
Sinto o fumo invadir-me, e respiro fundo.
Espero.
Espero que o fumo se dissipe. Que este momento termine. Espero que ele fale. Espero que a luz se apague. Espero algo. Espero somente.
Apaga a luz. Não abro os olhos. Deixo-me ficar.
Ele levanta-se.
Levanto a mão. Quero agarrar-lhe o braço. Dizer-lhe que fique, que não vá, mas uma vez mais não consigo.
Estico-me pelos lençóis, agora totalmente amarrotados.
Estico-me agora na cama enorme. Vazia.
Penso outra vez no antes. Não encontro resposta. Antes as coisas nunca tinham sido assim.
Oiço-o.
Oiço a garrafa abrir-se.
Oiço o liquido a cair.
Oiço o gelo que bate no copo, momentos antes vazio.
Imagino-o a beber.
Sento-me novamente.
Olho os números cintilantes do despertador. Quatro da manhã!
Percebo que a noite está perdida. Não faz mal – penso – também eu!
Tenho calor. Abro a janela. Lá fora a brisa corre suave, doce … um pouco morna até.
- Foi na Baixa – diz-me.
- O quê?! – pergunto confusa. Não o tinha ouvido chegar.
- Onde nos conhecemos – reforça.
Agora lembro-me. Convidou-me para um café. Nunca percebi porque é que aceitei.
Agora sim. Já me lembro.
- Convidaste-me para um café – digo aliviada por finalmente me ter recordado.
- Pois foi.
Ali está ele. Diante de mim. Em pé. Copo na mão. Cabelo revolto. Expressão magoada. Lábios sedutores. Sinto-lhe os olhos a percorrerem-me o corpo, procurando entrada na minha alma.
Sinto medo.
Viro-lhe as costas. Olho lá para fora. As luzes continuam todas apagadas.
- O que é que se perdeu entre nós. – repete num quase sussurro. Desta vez não era uma pergunta. Talvez fosse mais um lamento.
Voltei-me.
Estava novamente na cama. Segurava o copo com a mesma firmeza, que sei que gostava, de estar a segurar a nossa vida em conjunto. Olhava para o vazio.
Dirigi-me a ele. Mas parei.
Optei antes por me voltar a sentar. Aos pés da cama. Novamente. Na sua frente.
Olhámo-nos.
Ficámos assim. Talvez um segundo … um minuto … uma eternidade.
Estiquei-me, quase como desculpa para desviar o olhar.
Pegou nos cigarros. Acendeu dois. Deu-me um.
Sorriu-me.
Peguei no cigarro, retribuindo o sorriso.
Fecho os olhos.
Procuro esquecer. Quem sabe até adormecer.
Sinto-lhe as mãos nos pés gelados.
- Estás fria – diz-me, ao mesmo tempo que se levanta em direcção à janela aberta.
- Não feches – peço-lhe.
- Ficou frio de repente – responde-me quase em jeito de desculpa.
Não respondo.
A janela fecha-se deixando a perpetuar no quarto um som de baque seco.
Senta-se, e pega nos meus pés gelados, segurando-os entre as mãos quentes.
Amo-o, penso.
Talvez não. Não sei. Devo amar. Será que ele me ama. Ainda me ama?! Pergunto-lhe.
- Amo – responde sem hesitação e sem me olhar, mas novamente num misto de mágoa e desilusão.
- Desculpa – digo-lhe.
- Porquê? – pergunta, erguendo agora os olhos até mim, mas sem contudo deixar de me massajar os pés, agora mais quentes.
- Por não me lembrar.
Silêncio.
- Por não me lembrar de quando nos conhecemos.
Novamente o silêncio cortante.
- Não quer dizer nada – digo a tentar justificar o que bem sei não o pode ser. – Não quer dizer que me tenha esquecido porque me apaixonei por ti. Porque estou aqui hoje. Não quer dizer nada … Não quer dizer absolutamente nada. – continuo a dizer numa tentativa vã para nos convencer desta verdade dissimulada.
Mas … alguma coisa tinha acontecido … comigo … com ele … entre nós. Alguma coisa tem sempre de acontecer para que se esqueça o momento em que se conhece um grande amor. Alguma coisa tem sempre de acontecer.
Esquecer não significa nada. Procuro persistentemente enganar-me. Não sei porquê.
Continua o silêncio.
Encerro novamente os olhos, e desta vez, limito-me a sentir. A sentir as mãos quentes que suavemente percorrem parte do meu corpo.
Deslizo. As mãos permanecem, seguras … em fogo. Sinto-me incapaz. Sem forças.
Penso nele. Ali. Eu, é que estou longe. A milhões de anos-luz.
Estou longe e estou só. Não quero estar. Mas não consigo voltar. Algo me prende à solidão. Bem no fundo da minha alma. Não é ele, penso agora, não é ninguém. Seja que homem for. Sinto-me incapaz de sentir. Quase morta. Talvez seja medo. Medo do medo. Medo da desilusão. Medo da paixão, do amor. Sinto-me incapaz, mas sinto-me segura. Talvez esteja louca. Talvez … seja louca. Talvez seja isto o que quero sentir.
Quero sentir que o amo. Quero senti-lo junto a mim. Não quero a sua ausência.
Quero sentir somente!
Sinto-lhe as mãos nos joelhos. Levanto-me sobressaltada e fujo da cama quase desfeita. Vou para a janela.
Não a abro, mas também não me viro.
Não sei porque é que reagi assim.
Choro.
Não consigo parar. Agora não quero, não tenho vontade, mas o sentimento vence-me pelo cansaço.
Choro porque sei que vou perder. Choro porque tenho pena. Pena dele, pena da mulher ao telefone que procurava desesperadamente um homem chamado Miguel. Pena sobretudo de mim, por não ter coragem de sentir.
Por estar tão só e por estar tão longe.
Sinto-me a tremer. Sem poder sobre o meu corpo. Caio de joelhos e choro.
Choro sem parar, sem conseguir, nem querer.
Choro porque preciso. Preciso desesperadamente de me libertar de todos os fantasmas que teimo em guardar dentro de mim.
Não sei há quanto tempo estou assim.
Olho lá para fora. O sol parece querer nascer. Estou de rastos, penso, tal como a minha vida. Os olhos ardem-me. Olho para a cama. Lá está ele. Chora. Baixinho, como se quisesse que não o ouvisse.
Levanto-me e vou até à cama. Fico em pé. Não lhe toco. Olha-me com olhos tristes e cansados. Sem saber como abraço-o. Forte como nos primeiros tempos.
- Amo-te – digo-lhe sem conseguir evitar as palavras.
Não me responde.
Perdi, pensei com tristeza. Perdi-o.
Ficámos assim, não sei por quanto tempo. Juntos. A recuperar o tempo perdido. Juntos, no silêncio. No quarto abafado e cortado pela luz do dia a nascer.
No despertador tocam as sete da manhã.
Tenho de ir trabalhar, pensei, sem no entanto me mexer. Um movimento, um só por mais pequeno que fosse, podia deitar tudo a perder.
De súbito olha-me.
Vou fazer um café forte – diz-me, como se tratasse duma manhã qualquer.
Levanta-se.
Vejo-o afastar-se. Fecho os olhos, no mesmo instante que o sinto novamente junto a mim.
- Não precisamos de café, diz-me ao mesmo tempo que as mãos quentes e fortes percorrem com destreza o meu corpo.
Não me afasto. Abro os olhos e sorrio.
Sinto-lhe os lábios, macios, suaves junto aos meus. Sinto o doce arranhar da barba forte. Sinto-lhe o desejo. Sinto o meu desejo.
Caio sobre a cama como morta, mas viva por dentro.
Não quero acabar este momento. Quero fazê-lo durar, prolongá-lo até à eternidade dos dois.
Abraço-o com força.
Amo-te, digo-lhe baixo junto ao ouvido.
Amo-te, responde-me do mesmo modo suave eterno.
Eu sei, penso agora, sempre soube.
Acordei atordoada. Olhei os números cintilantes no despertador.
Três da manhã!
Quem seria?
- Vais atender – pergunta-me ele tão atordoado quanto eu.
Levantei-me e corri para a sala, em busca do objecto de som estridente. Nunca tal caminho me tinha parecido assim tão longo.
- Estou, digo numa mistura de cansaço e susto
- Está, responde uma voz brusca, também ela de mulher – O Miguel está? Vai chamá-lo?
- O Miguel?! – pergunto agora ainda mais confusa, não sei se pelo sono, pela pergunta, ou simplesmente pela amargura que emanava da voz do outro lado da linha – mas aqui não mora nenhum Miguel.
- Mentirosa! – grita a outra voz num tom de quase animalesco desespero – foi ele que me deu este número. Vai chamá-lo já!
- Desculpe mas … - comecei por dizer, mas logo fui interrompida.
- Cabra!
Desliguei. Ser insultada às três da manhã por uma voz completamente estranha era simplesmente demais. Comecei a percorrer o mesmo longo caminho que me levaria de volta para a cama, mas novamente o telefone tocou. Nunca me tinha apercebido de quanto era estridente e desagradável este som.
- Estou – tornei a repetir certa do resultado.
- Vai chamá-lo, suplicava agora a mesma voz num misto de dor e raiva – preciso de lhe falar, vai chamá-lo.
- Não mora aqui. – Limitei-me a dizer e desliguei.
Tirei o telefone do descanso assegurando-me assim que teria o resto duma noite sossegada.
Cheguei finalmente ao quarto. Ele estava acordado. Sentado na cama, à minha espera.
- Quem era? – perguntou
- Era engano – respondi, deitando-me – alguém que procurava um Miguel.
- Miguel?!
- Pois.
Deitou-se. Senti o calor do seu corpo bem próximo do meu. Encolhi-me. O sono tinha passado. Recordei a voz, e senti pena. Pena porque para além da dureza, a voz parecia triste. Apesar de tudo, parecia vazia e só.
Sentei-me.
No escuro procurei os cigarros.
Acendi um e inalei com prazer.
- O que foi? – perguntou ele acendendo a luz.
- Não foi nada – respondi – desculpa se te acordei.
Olhei para ele. E vi-o como há muito não acontecia. Os olhos, o cabelo, os lábios… os lábios. Sim, decididamente tinham sido os lábios. Tentei em vão recordar o momento em que nos conhecemos. Parecia ter sido noutra vida.
Como é que nos conhecemos? – perguntei - lhe
- O quê?! – retorquiu confuso pelo sono ou pela pergunta.
- Não me consigo lembrar – respondo numa justificação pobre e totalmente desnecessária. – Não sei … parece-me ter sido noutra vida … distante. – Acrescento ainda, certa da dureza das palavras que não tento evitar.
Oiço-o rir, um riso baixo e triste, como o de alguém que há muito aguarda estas palavras.
- Estás portanto farta – afirma, olhando-me sem qualquer pudor.
- Não foi isso que eu disse – respondo do mesmo modo mas sem convicção.
Se calhar era mesmo isso que lhe queria dizer. Não sei. Estava farta antes do telefonema … ou terá sido antes dos lábios. Não sei. Só sei que quero acabar com esta conversa.
- Esquece – tornei a dizer, escorregando suavemente para dentro dos lençóis. Boa noite!
Fechei os olhos mas não senti a luz apagar-se. Tornei abri-los. Estava acesa, agora era ele quem fumava.
Não disse nada, deixei-me estar … imóvel, absorta pelo silêncio imenso.
Pensei no antes. No antes dorido, atormentado. No antes que parece querer consumir-me a alma. Deixei-me consumir.
Antes ter-me-ia levantado, partilhado o seu cigarro. Antes ter-lhe-ia passado a mão pelos cabelos despenteados e pelo rosto mutilado pela barba de alguns dias. Antes ter-lhe-ia dito que gostava dele, ou até mesmo que o amava.
Antes. Agora.
Agora limito-me a ficar assim … imóvel, de olhos fechados a sentir no ar o fumo intenso do seu cigarro. Agora limito aguardar que ele apague a luz.
Apagou-a.
Abro os olhos.
Tenho vontade de chorar, mas não choro. Tenho vontade mas falta-me o sentimento.
Oiço-o levantar-se novamente.
Fecho os olhos.
Acende a luz.
Finjo dormir, talvez para evitar mais um confronto.
- O que é que se perdeu – pergunta ele.
Percebo pelo seu tom que não é mais uma simples pergunta a perder-se no silêncio enorme que teima em permanecer entre nós. Resolvo enfrentar.
Levanto-me para logo me sentar novamente, desta feita aos pés da cama, bem em frente dele. Malditos lábios! Olho – o … realmente. Vejo-o retribuir o olhar na expectativa duma resposta.
- Não sei – respondo com honestidade – talvez nada … talvez tudo. Não estou certa de que houvesse algo a ser perdido – completo, esperando com ansiedade uma reacção.
- Achas mesmo! – responde, num misto de mágoa e exaltação. – Achas realmente que foi tudo um enorme equívoco? Eu não, eu sei que o que sinto por ti … o que sinto não é uma ilusão, é a realidade.
- Cada um tem a sua – respondo.
Ficámos em silêncio … novamente o imenso silêncio.
Tentei desesperadamente lembrar o momento em que o conheci. Em vão. Torno a olhá-lo. Vejo-o bem em frente a mim. Pega novamente num cigarro. Acende-o.
Vejo o fumo que o rodeia, envolvendo-o.
Sei que devo dizer alguma coisa. Quero desesperadamente dizer alguma coisa. Preciso de dizer alguma coisa. Mas … não consigo.
Ao invés, volto a fechar os olhos.
Sinto o fumo invadir-me, e respiro fundo.
Espero.
Espero que o fumo se dissipe. Que este momento termine. Espero que ele fale. Espero que a luz se apague. Espero algo. Espero somente.
Apaga a luz. Não abro os olhos. Deixo-me ficar.
Ele levanta-se.
Levanto a mão. Quero agarrar-lhe o braço. Dizer-lhe que fique, que não vá, mas uma vez mais não consigo.
Estico-me pelos lençóis, agora totalmente amarrotados.
Estico-me agora na cama enorme. Vazia.
Penso outra vez no antes. Não encontro resposta. Antes as coisas nunca tinham sido assim.
Oiço-o.
Oiço a garrafa abrir-se.
Oiço o liquido a cair.
Oiço o gelo que bate no copo, momentos antes vazio.
Imagino-o a beber.
Sento-me novamente.
Olho os números cintilantes do despertador. Quatro da manhã!
Percebo que a noite está perdida. Não faz mal – penso – também eu!
Tenho calor. Abro a janela. Lá fora a brisa corre suave, doce … um pouco morna até.
- Foi na Baixa – diz-me.
- O quê?! – pergunto confusa. Não o tinha ouvido chegar.
- Onde nos conhecemos – reforça.
Agora lembro-me. Convidou-me para um café. Nunca percebi porque é que aceitei.
Agora sim. Já me lembro.
- Convidaste-me para um café – digo aliviada por finalmente me ter recordado.
- Pois foi.
Ali está ele. Diante de mim. Em pé. Copo na mão. Cabelo revolto. Expressão magoada. Lábios sedutores. Sinto-lhe os olhos a percorrerem-me o corpo, procurando entrada na minha alma.
Sinto medo.
Viro-lhe as costas. Olho lá para fora. As luzes continuam todas apagadas.
- O que é que se perdeu entre nós. – repete num quase sussurro. Desta vez não era uma pergunta. Talvez fosse mais um lamento.
Voltei-me.
Estava novamente na cama. Segurava o copo com a mesma firmeza, que sei que gostava, de estar a segurar a nossa vida em conjunto. Olhava para o vazio.
Dirigi-me a ele. Mas parei.
Optei antes por me voltar a sentar. Aos pés da cama. Novamente. Na sua frente.
Olhámo-nos.
Ficámos assim. Talvez um segundo … um minuto … uma eternidade.
Estiquei-me, quase como desculpa para desviar o olhar.
Pegou nos cigarros. Acendeu dois. Deu-me um.
Sorriu-me.
Peguei no cigarro, retribuindo o sorriso.
Fecho os olhos.
Procuro esquecer. Quem sabe até adormecer.
Sinto-lhe as mãos nos pés gelados.
- Estás fria – diz-me, ao mesmo tempo que se levanta em direcção à janela aberta.
- Não feches – peço-lhe.
- Ficou frio de repente – responde-me quase em jeito de desculpa.
Não respondo.
A janela fecha-se deixando a perpetuar no quarto um som de baque seco.
Senta-se, e pega nos meus pés gelados, segurando-os entre as mãos quentes.
Amo-o, penso.
Talvez não. Não sei. Devo amar. Será que ele me ama. Ainda me ama?! Pergunto-lhe.
- Amo – responde sem hesitação e sem me olhar, mas novamente num misto de mágoa e desilusão.
- Desculpa – digo-lhe.
- Porquê? – pergunta, erguendo agora os olhos até mim, mas sem contudo deixar de me massajar os pés, agora mais quentes.
- Por não me lembrar.
Silêncio.
- Por não me lembrar de quando nos conhecemos.
Novamente o silêncio cortante.
- Não quer dizer nada – digo a tentar justificar o que bem sei não o pode ser. – Não quer dizer que me tenha esquecido porque me apaixonei por ti. Porque estou aqui hoje. Não quer dizer nada … Não quer dizer absolutamente nada. – continuo a dizer numa tentativa vã para nos convencer desta verdade dissimulada.
Mas … alguma coisa tinha acontecido … comigo … com ele … entre nós. Alguma coisa tem sempre de acontecer para que se esqueça o momento em que se conhece um grande amor. Alguma coisa tem sempre de acontecer.
Esquecer não significa nada. Procuro persistentemente enganar-me. Não sei porquê.
Continua o silêncio.
Encerro novamente os olhos, e desta vez, limito-me a sentir. A sentir as mãos quentes que suavemente percorrem parte do meu corpo.
Deslizo. As mãos permanecem, seguras … em fogo. Sinto-me incapaz. Sem forças.
Penso nele. Ali. Eu, é que estou longe. A milhões de anos-luz.
Estou longe e estou só. Não quero estar. Mas não consigo voltar. Algo me prende à solidão. Bem no fundo da minha alma. Não é ele, penso agora, não é ninguém. Seja que homem for. Sinto-me incapaz de sentir. Quase morta. Talvez seja medo. Medo do medo. Medo da desilusão. Medo da paixão, do amor. Sinto-me incapaz, mas sinto-me segura. Talvez esteja louca. Talvez … seja louca. Talvez seja isto o que quero sentir.
Quero sentir que o amo. Quero senti-lo junto a mim. Não quero a sua ausência.
Quero sentir somente!
Sinto-lhe as mãos nos joelhos. Levanto-me sobressaltada e fujo da cama quase desfeita. Vou para a janela.
Não a abro, mas também não me viro.
Não sei porque é que reagi assim.
Choro.
Não consigo parar. Agora não quero, não tenho vontade, mas o sentimento vence-me pelo cansaço.
Choro porque sei que vou perder. Choro porque tenho pena. Pena dele, pena da mulher ao telefone que procurava desesperadamente um homem chamado Miguel. Pena sobretudo de mim, por não ter coragem de sentir.
Por estar tão só e por estar tão longe.
Sinto-me a tremer. Sem poder sobre o meu corpo. Caio de joelhos e choro.
Choro sem parar, sem conseguir, nem querer.
Choro porque preciso. Preciso desesperadamente de me libertar de todos os fantasmas que teimo em guardar dentro de mim.
Não sei há quanto tempo estou assim.
Olho lá para fora. O sol parece querer nascer. Estou de rastos, penso, tal como a minha vida. Os olhos ardem-me. Olho para a cama. Lá está ele. Chora. Baixinho, como se quisesse que não o ouvisse.
Levanto-me e vou até à cama. Fico em pé. Não lhe toco. Olha-me com olhos tristes e cansados. Sem saber como abraço-o. Forte como nos primeiros tempos.
- Amo-te – digo-lhe sem conseguir evitar as palavras.
Não me responde.
Perdi, pensei com tristeza. Perdi-o.
Ficámos assim, não sei por quanto tempo. Juntos. A recuperar o tempo perdido. Juntos, no silêncio. No quarto abafado e cortado pela luz do dia a nascer.
No despertador tocam as sete da manhã.
Tenho de ir trabalhar, pensei, sem no entanto me mexer. Um movimento, um só por mais pequeno que fosse, podia deitar tudo a perder.
De súbito olha-me.
Vou fazer um café forte – diz-me, como se tratasse duma manhã qualquer.
Levanta-se.
Vejo-o afastar-se. Fecho os olhos, no mesmo instante que o sinto novamente junto a mim.
- Não precisamos de café, diz-me ao mesmo tempo que as mãos quentes e fortes percorrem com destreza o meu corpo.
Não me afasto. Abro os olhos e sorrio.
Sinto-lhe os lábios, macios, suaves junto aos meus. Sinto o doce arranhar da barba forte. Sinto-lhe o desejo. Sinto o meu desejo.
Caio sobre a cama como morta, mas viva por dentro.
Não quero acabar este momento. Quero fazê-lo durar, prolongá-lo até à eternidade dos dois.
Abraço-o com força.
Amo-te, digo-lhe baixo junto ao ouvido.
Amo-te, responde-me do mesmo modo suave eterno.
Eu sei, penso agora, sempre soube.
7 comentários:
Adorei!!!
Bolas ... que você é mesmo poupada.
Até nos comentários.;)
Obrigada
Beijinhos
O estilo é diferente do do cap. I mas eu continuo a gostar. Sou gaja para comprar um livro com um romance escrito neste género.
Obviamente que não sendo linguísta ou sequer critíca literária, faltam-me os termos certos.
Assim, e porque o que importa é o que sinto: o texto apraz-me e M. faz o favor de comerçar já a trabalhar o próximo, a malta aguarda.Parabéns!
Olá bom dia e obrigada
Gostei muito, é mesmo do género que eu gosto.
Continua porque eu vou ficar à espera.
Beijinhos
Luisa
Embora longo cativou-me até ao fim, o que é bom sinal!!
Gostei do estilo, da dualidade de emoções, das frases curtas, resumindo, é para continuar!
Beijinho grande
Obrigada a todas pelos comentários.
Agradeço o incentivo.
Beijinhos
Chegada de Espanha há meia dúzia de horas, sento-me na varanda num final de tarde de sábado a ver o mar da praia do Vau. Ligo o portátil e decido ir matar saudades do mundo blogosférico. Gostei do que li porque prendeu a minha atenção durante uns largos minutos, porque me envolveu. E no fundo acho que é isso que procuramos quando lemos um livro/artigo/texto, que ele de certa forma nos envolva. Parabéns mais uma vez, estou curiosa para saber quem seria esse tal Miguel...! Bom trabalho :)
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